
Trigun
★★★★★★★☆☆☆
(Nota: 07/10)
O ambiente desolado lembra a Mad Max. Temos um planeta desértico aliado a destroços de alta tecnologia, neste cenário ermo, há criminosos punks com implantes robóticos e modificações biogenéticas a oprimir seus semelhantes ao som de um rockzinho maroto misturado a um jazz vintage. Mas, o que estes marginais querem mesmo é encontrar Vash the Stampede, um pistoleiro com a cabeça a prêmio, cujas vestes lembram muito a de um cardeal inquisidor. Depois de algum tempo a consumir ficção nosso imaginário se torna preguiçoso, nos acostumamos a aceitar a premissa de determinada obra, vivê-la em seu universo como um sonho, mas sem o espanto de nos imaginarmos dentro dela, de extrapolarmos as suas consequências ao mundo real. É justamente este exercício o qual convido o leitor. Imagine, com todo o realismo e esforço, viver neste mundo ermo... Neste faroeste pós-apocalíptico, você, um homem comum, em meio a monstros e cyborgs, um sol escaldante sob a cabeça, a água escassa, e tecnologia avançada, e ao mesmo tempo ancestral, tida como um tesouro de eras distantes. Viver altas aventuras neste contexto exigiria um espírito firme, um caráter sólido e a frieza para puxar o gatilho para defender a si mesmo e aos seus. Aliás, Vash não puxa o gatilho...
Como o típico herói dos anos 90, o nosso herói é um pacifista. Vash não quer matar ninguém, e quando se mete em confusão e é obrigado a abrir fogo, sempre procura minimizar os ferimentos e evitar a morte do inimigo. Nessas confusões, episódios secundários com vistas a trabalhar a interação entre os personagens até que a trama principal é inserida gradualmente, vemos expresso frutuosas reflexões que ainda tem lugar em nosso mundo ''pré-apocalíptico''. Há grandes capitalistas (ao menos para os padrões daquele faroeste espacial) a monopolizar os recursos naturais, lucrando com a miséria alheia; há bandidos, que apesar de bandidos, estabelecem entre si um código de honra e companheirismo; há selvagens assassinos arrependidos e a amansados pelo amor familiar, há o apego camponês a terra que trabalhara contra (uma vez mais) a ganância capitalista; há o drama imortal entre a concretização da vingança e o perdão.
Há também padres; falo de Nicholas D. Wolfwood, um sujeito maneiro, embora modernista e safado. A esse respeito, creio que sou o primeiro brasileiro a escrever algo digno a respeito, uma vez que os demais críticos, tal qual o autor do anime, aparentam não ter compreendido muito bem a doutrina católica, tendo assimilado apenas a sua estética. Todavia, não nos precipitemos, falemos um pouco do personagem. Nicholas é um padre andarilho, uma pessoa boa muito semelhante a Vash, que vive para cuidar de órfãos abandonados, a diferença do sacerdote para com o protagonista é que enquanto Vash é movido por ideias utópicas e o desejo de salvar todo mundo a todo o tempo, Nicholas é um homem realista, sabe que sacrifícios são necessários, não hesita em realizá-los, apesar de buscar sempre o caminho onde as perdas em vidas humanas sejam as menores. Agora aquilo que só um católico poderia perceber,: Nicholas é um herege safado. Vem spolier por aí: o infeliz anda por aí sem batina, não mostra nenhum zelo em pregar a doutrina e realizar seu ofício espiritual, chega a profanar o celibato e ainda por cima morre proferindo tolices reecarnacionista! Isso me deixou irritado! Pesquisando mais afundo, porém, descobri que apesar da estética católica, o personagem, ao menos na obra original, isto é no mangá, pertence a uma igreja fictícia de adoradores de plantas. Já estava eu a ligar para a inquisição espanhola, mas o coitado está fora de nossa jurisdição.
Isso aqui já está virando textão, então para encerrar vou direto ao argumento final do anime, expressão do ethos do pós-guerra com todos os seus vícios e virtudes: a questão do pacifismo e da utopia. Vash não quer matar ninguém, quer salvar todo mundo a todo o tempo. Nicholas entende que para salvar os cordeiros não se pode poupar o lobo. Ao fim o autor parece dar razão a Vash, que preferiu dialogar com seus inimigos a destruí-los. Todavia, a que preço? As repetidas omissões de Vash foram ocasião de um morticínio. Tivesse ele executado a pena capital, tantas vezes moralmente justificado pelo princípio de legítima defesa própria e alheia, muitos inocentes teriam sido poupados. É natural e humano querer salvar a todos. É profundamente cristão inclusive se sacrificar com vistas a isso, buscar o melhor, não apenas para si mas, para todos. Entretanto, é uma dolorosa e sangrenta ilusão pensar que isso será possível. Diria eu, é uma heresia, é a negação do inferno. O mundo melhor não virá. Não são todos os que podem ser salvos. A perfeição e a utopia não são alcançáveis. Há momentos em que se deve escolher entre salvar alguns ou perder a todos. Vash estava errado, o padre (modernista) Nicholas tinha razão. É preciso ser realista e abandonar as ilusões afim de minimizar os sacrifícios, doces utopias não raro são terminam de modo trágico e sangrento.
Por fim, antes de nos despedirmos caro leitor, fiquemos com está bela música que tem papel de destaque na trama:


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