Já faz alguns dias que estou a ler o “Triste Fim de Policarpo Quaresma”, um clássico da literatura brasileira de autoria do escritor Lima Barreto. Recordo-me de ter estudado o romance há tempos imemoriais quando estava no ensino médio, bem como de ter visto um filme, de péssima qualidade, inspirado na obra. Sim, o filme era terrível! Fora incapaz de captar toda a carga dramática da obra, que faz-me lembrar a Tim Burton. Nos filmes de Burton há sempre um contraste entre um protagonista estranho, mas, ao mesmo tempo, sensível, inocente e ingênuo, que busca se adaptar a uma sociedade medíocre que não o compreende. Tal é a premissa desse clássico nacional; o major Policarpo é um homem de estudo, um intelectual e alguém apaixonado pelo país, ao mesmo tempo encontra a incompreensão de uma sociedade apática e mesquinha, sociedade esta que valoriza mais os símbolos de conhecimento que o próprio conhecimento, que se ira contra tudo aquilo que destoa da mediocridade cotidiana. Logo no primeiro capítulo temos notícias de que o velho major:
Se não tinha amigos na redondeza, não tinha inimigos, e a única desafeição que merecera fora a do Doutor Segadas, um clínico afamado no lugar, que não podia admitir que Quaresma tivesse livros: “Se não era formado, para quê? Pedantismo!
O estudo e a leitura de Quaresma também são motivos de troça no terceiro capítulo, e para seus contemporâneos, causa de sua loucura:
-Quaresma está doido.
(…)
-Nem se podia esperar outra cousa, disse o doutor Florêncio. Aqueles livros, aquela mania de leitura…
-Pra que ele lia tanto? Indagou Caldas?
-Telha de menos, disse Florêncio.
Genelício atalhou com autoridade:
-Ele não era formado, para que meter-se em livos?
-É verdade, fez Florêncio.
-Isto de livros é bom para sábios, para doutores, observou Sigismundo.
-Devia até ser proibido, disse Genelício, a quem não possuísse um título “acadêmico” ter livros. Evitavam-se assim essas desgraças. Não acham?
Esse ódio ao conhecimento acompanhado pela veneração dos títulos acadêmicos persiste até hoje. Recordo-me ainda uma situação pessoal, onde em um grupo paroquial instava o público a ler nas Sagradas Escrituras, alguns dos chamados livros sapienciais: Provérbios, Eclesiastes e Eclesiástico, livros simples e ao mesmo tempo interessantíssimos, mas fui repreendido pela padre, segundo o qual não se devia estudar isso fora de uma faculdade de teologia...
Não é apenas na sua relação com a vida intelectual que se vê a mesquinhez da sociedade brasileira, chama-me a atenção a atonia da vida afetiva das moças, conforme a descrição do autor:
(…) Casar, para ela, não era negócio de paixão, nem se inserira no sentimento ou nos sentidos; era uma ideia, uma pura ideia. Aquela sua inteligência rudimentar tinha separado da ideia de casar o amor, o prazer dos sentidos, uma tal ou qual liberdade, a maternidade, até o noivo. Desde menina, ouvia a mamãe dizer: “Aprenda a fazer isso, porque quando você se casar”… ou senão: “Você precisa aprender a pregar botões, porque quando você se casar..”
A todo instante e a toda hora, lá vinha aquele - “porque, quando você se casar...” - e a menina foi se convencendo que toda a existência só tendia para o casamento. A instrução, as satisfações íntimas, a alegria, tudo isso era inútil; a vida se resumia numa cousa: casar.
De resto, não era só dentro de sua família que ela encontrava aquela preocupação. No colégio, na rua, em casa das famílias conhecidas, só se falava em casar. “Sabe, Dona Maricota, a Lili casou-se, não fez grande negócio, pois parece que o noivo não é la grande cousa”; ou então: “ A Zezé está doida para arranjar casamento, mas é tão feia, meu Deus!...”
A vida, o mundo, a variedade intensa dos sentimentos, das ideias, o nosso próprio direito á felicidade, foram parecendo ninharias para quele cerebrozinho; e , de tal forma casar-se lhe representou cousa importante, que uma espécie de dever, que não se casar, ficar solteira, “tia”, parecia-lhe um crime uma vergonha.
Como é triste que uma vocação tão sublime como o matrimônio se converta em uma mera obrigação social, pobrezinha a Ismênia, a mocinha da ficção, que afinal foi o retrato de tantas outras, e ainda o é (cheguei a conhecer gente semelhante em minhas andanças, mas isso é outra história…).
Enfim, a obra é interessantíssima, prende o leitor e revela muitos dos vícios da alma brasileira que persistem ainda hoje. Talvez ainda retorne ao assunto em postagens futuras, de todo o modo, fica a indicação.

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